Carlos Dugos
RESUMO
Na tradição ocidental, o simbolismo da pedra
constitui um tema maior, sobretudo nas vias múltiplas da Arte Real. Às várias pedras maçônicas, indicadoras de outros tantos
graus iniciáticos, correspondem, mais ou menos diretamente, os diversos estados
da pedra alquímica, ao longo da Obra. Do ponto de vista religioso, o
cristianismo apresenta valores semelhantes, fazendo da pedra um elemento
simbólico central da doutrina salvífica.
Ao contrário do que frequentemente se crê, tais
coincidências não têm origem em processos de adoção, em que símbolos
preexistentes são enxertados arbitrariamente numa corrente particular; elas
correspondem à coerência de um único repertório simbólico específico, próprio
para servir de suporte a uma determinada doutrina e à ação em consequência.
ESPECIFICIDADE
DA ARTE REAL
A Arte Real,
nas suas várias modalidades, constitui um código espiritual de conhecimento
geminado com um código técnico de ação. O que se sabe reflete-se diretamente no
que se faz e o que se vai fazendo reflete-se diretamente no que se vai sabendo.
Deste modo, à Iniciação
Real estão ligados dois deveres iniciáticos: conhecer as causas espirituais
da realidade não manifestada e agir materialmente, de modo canônico, sobre os
efeitos da manifestação; mais sinteticamente: saber, em potência e operar, em ato.
A divisa alquímica ora et labora é,
neste aspecto, exemplar.
Nas várias disciplinas iniciáticas de manipulação
ou transmutação da Natureza, cabem praticamente todos os arquétipos da atividade
humana, desde as artes
e ofícios ao exercício
da guerra1; no
entanto, devido ao âmbito em que incide a sua ação, Alquimia e Maçonaria2
encontram-se em grande proximidade.
PEDRA
DE OBRA E PEDRA OCULTA
A pedra que o construtor toma para ser afeiçoada e
integrada no edifício corresponde ao lápis
que constitui a matéria prima a manipular no matraz.
Porém, quer uma quer outra, independentemente da
utilidade material de que possam vir a revestir-se, representam o aspecto mais
exterior da Obra, ou seja: apresentam-se apenas como resultado de uma ação
exercida, pelo oficiante sobre a manifestação. Esse resultado, em tudo
semelhante ao efeito do espelho, projeta na manifestação princípios não
manifestados, estes de carácter eminentemente interior.
Assim, pode afirmar-se que, a pedra visível e
palpável sobre a qual opera o manipulador, é a manifestação de uma pedra
oculta, invisível e impalpável. Esta pedra - causa espiritual - determina e
condiciona a pedra da Obra - efeito material. Entre elas, como elemento de ligação mediando dois mundos e duas
ordens de realidade, o operador realiza a ação perfeita que é a de representar
materialmente, na manifestação, o sentido e a ordem transcendente, numa ação
dupla e simultânea, impregnando a matéria de espírito e dando corpo à
espiritualidade, conforme a regra solve
et coagula.
Dissolver o fixo e fixar o volátil eis o permanente
labor do alquimista e do maçom. O primeiro reproduz no vaso o drama cósmico da
Criação, de modo a retificar a pedra material, marcada pelo estigma da Queda,
de modo a fazer dela um reflexo perfeito da pedra oculta. O segundo toma a
pedra inútil e retifica-a de modo a que ela possa ser parte corporal do Templo,
ganhando nessa metamorfose uma condição espiritual que a sua imperfeição nativa
não permitiria. Espiritualizar a substância dando substância ao espírito, eis o
ofício do manipulador perfeito, com mandato iniciático para o seu labor.
ESTADOS
DA PEDRA NAS NOMENCLATURAS SIMBÓLICAS
A Tradição distingue dois gêneros de pedra sagrada ou sacralizada: os aerólitos - porque
oriundos do Céu, com todas as consequências simbólicas dessa origem - e as
pedras de Obra, ou seja, as que são objeto de manipulação iniciática. O aerólito,
correspondendo a uma descida de um princípio celeste à manifestação terrestre,
tem por complemento o bétilo, representando uma subida de um elemento terrestre
à espiritualidade celeste.
No caso presente, interessa-nos exclusivamente a
pedra manipulada canonicamente que, tendo no bétilo o seu arquétipo, constitui
sempre um modo recíproco de espiritualizar a substância, materializando o
espírito.
Tomando como dupla referência às tradições
herméticas e maçônicas, estabeleçamos as analogias entre a pedra alquímica,
enquanto matéria prima da Obra, e a pedra do construtor, enquanto módulo
individual do Templo. Partindo deste princípio, consideremos analogicamente as
fases fundamentais da Obra do alquimista e do maçom.
A fase hermética do nigredo, em que a matéria
escolhida é "carbonizada" destina-se a provocar a sua morte física - putrefacio - condição primeira para um
eventual renascimento in gloria.
Marcado pelo luto das trevas, este momento constitui uma "paixão" no
sentido teológico do termo. Tal dissolução morfológica destrói a escória
corporal, tomando a massa um aspecto cadavérico. Não obstante, sob tal
aparência, algo palpita no seu interior, indicando que a morte é um mero efeito
iniciático e não uma causa absoluta.
Bem assim, a Pedra Bruta maçônica é negra e sobre
ela se faz o primeiro trabalho do recém-iniciado que, vindo das trevas mortais
em que todo o homem nasce, viu uma réstia da
luz, ao terceiro "golpe". Esta pedra disforme, aparentemente
inerte, guarda igualmente, em si, o germe modular de uma metamorfose.
Aprendendo de pronto os ensinamentos da Iniciação, o novo Aprendiz transmite à
Pedra Bruta, por três "golpes", a luz que do mesmo modo lhe foi dada.
Com isto, torna dúctil a morfologia áspera do mineral, transmitindo-lhe um
sopro do espírito, como prelúdio de uma fase mais avançada da Obra.
O albedo
hermético tem o seu tempo quando a escória negra da pedra calcinada apresenta,
em alguns pontos, o brilho do diamante negro. É o sinal de que o cadáver se
anima de uma insuspeitada vitalidade. Trata-se, então, de libertar essa emanação de todo o carvão que a
envolve, de forma a que, devidamente purificada e isolada, ganhe o esplendor
brilhante da neve, um fulgor de alvura e de pureza dificilmente atribuível à
natureza, no seu estado nativo. Ao corpo renascido juntou-se agora uma
"alma".
Essa brancura é também emblemática da Pedra Cúbica,
na qual o Companheiro maçom aplicou a sua Arte purificadora. A escória que
enegrecia o minério e lhe dava uma forma caótica, foi desbastada até se obter a
perfeição do cubo, entidade geométrica associada à volumetria das quatro, das
seis e, potencialmente, às sete direções do espaço, ou outras tantas qualidades
arquetípicas da realidade. Agora, a pedra é uma fonte de conhecimento e
ensinamento.
Mantendo um regime de fogo e tempo, que a Alquimia
tem por adequado, a pedra alva ganha nova coloração e alcança o rubedo. Não há - dizem os manipuladores
afortunados - nenhum vermelho na Natureza que se assemelhe ao esplendor rubro
dessa matéria sublime. Alegoricamente ela é a coroa real de toda a Obra; o
ponto mais alto a que o artista dedicado esperaria chegar. A partir de então já
nada se pode acrescentar ou subtrair à pedra excelsa. Espírito e matéria é uma
só coisa.
Também a Pedra Cúbica de Ponta deve ser
representada a vermelho. À perfeição do quadrado, foi adicionada a natureza
divina do triângulo; ao cubo do espaço veio juntar-se a pirâmide de tempo.
Depois de muito labor e meditação o Mestre maçom alcançou também ele, a coroa
da sua Arte, produzindo uma pedra em que se consubstanciam o Céu e a Terra,
numa única e nova natureza.
OUTRAS
PEDRAS COINCIDENTES
A Pedra Filosofal alquímica constitui uma
particularidade contida na natureza da Pedra Rubra, do mesmo modo que a Pedra
de Chave maçônica representa uma especificidade incluída no contexto geral da
Pedra Cúbica de Ponta. A primeira
reporta-se a um sentido temporal de eternidade - a sua posse equivale,
alegoricamente, a viver-se para sempre, livre de doenças e da morte. A segunda
está associada à ideia do espaço
infinito - sendo ela o remate central da abóbada do Templo, o que equivale a
dizer-se a Abóbada Celeste, constitui o suporte do Universo3.
A Maçonaria conhece ainda a Pedra Angular ou de
Fundamento, cornerstone cuja instalação,
no início de uma obra de edificação, é praticada mediante um rito próprio que,
na versão profana da construção civil, foi substituído pela cerimônia do
lançamento da "primeira pedra". Tal rito está ligado à ideia de
início; primeiro impulso, em tudo conforme com o simbolismo de Janu, a divindade latina propiciadora de
todos os começos, já que presidia à porta que mediava entre o fim de um ano e o
começo de outro, numa clara alusão ao carácter solsticial desta entidade4.
Como se depreende, o simbolismo desta pedra remete
para a matéria prima inicial da Obra, seja ela a Pedra Bruta ou a substância
escolhida para a manipulação alquímica.
COINCIDÊNCIAS
RELIGIOSAS
A corrente religiosa cristã, a cuja tradição está
associada praticamente todas as modalidades ocidentais da Arte Real, incluindo a Alquimia e a Maçonaria, tem na pedra uma das
suas principais figuras simbólicas. De resto, o simbolismo da pedra é
universal, particularmente nos povos sedentários e, sobretudo, devido à unidade da Tradição Primordial, de
onde provêm todas as tradições particulares.
De um modo geral, uma pedra é tomada como símbolo
de um homem, em termos individuais, enquanto o conjunto ordenado de pedras - o Templo - simboliza o coletivo
da Humanidade.
Pedro foi chamado a tornar-se a pedra de fundamento
da futura Igreja já que, do ponto de vista pastoral, a pedra perfeita
personificada pelo sucessor de Cristo, serviria de modelo às outras pedras
formadas pelo coletivo dos crentes, sendo a Igreja o próprio conjunto assim
formado.
Recorde-se, por outro lado, o anúncio evangélico de
que o Templo derrubado seria reerguido em três dias, correspondentes à paixão,
morte e ressurreição de Cristo e, bem assim, às três fases da Obra hermética e
as três idades da mestria maçônica.
Estas consonâncias entre conteúdos religiosos e
iniciáticos nada têm de estranho e não configuram de modo algum um contencioso
hierárquico entre as duas instituições. A via da fé e a via da Iniciação
correspondem a caminhos paralelos, oriundos de um princípio comum. Tal
identidade é particularmente notável no cristianismo, devido à componente de ação
evangelizadora que o caracteriza, ou seja: do mesmo modo que a Arte Real - como modelo iniciático por
excelência - manipula canonicamente o mundo manifestado com vista à sua retificação,
o cristianismo atua sobre a manifestação humana em ordem à sua
espiritualização.
A corrente cristã apresenta, na sua origem, um
claro sinal do que os elementos do princípio real e ativo são nela
predominantes sobre os elementos do princípio sacerdotal e contemplativo. Jesus
nasce sob a égide do Leão da Casa Real de Judá, de tradição guerreira e não no
seio das tribos de vocação sacerdotal, nomeadamente a de Levi.
Esta origem - sempre observada pelas ordens da
Cavalaria Espiritual do Ocidente - cria uma consonância exemplar entre tradição
religiosa e tradição iniciática. O moderno contencioso que opõe a Igreja a
certas modalidades de Iniciação não passa de um mal entendido, proveniente do
obscurecimento espiritual de certas organizações que, ancestralmente designadas
por iniciáticas apresentam, doutrinariamente, todos os sinais da contra
iniciação, devido ao seu alinhamento com as fórmulas do racionalismo e do
ateísmo militante.
Estas breves notas limitaram-se a aflorar uma
temática que, como se compreende é vastíssima. Neste sentido, o único objetivo
a que aqui nos propusemos foi o de despertar o interesse do auditório para um
estudo pessoal e aprofundado sobre o assunto.
Carcavelos, Julho de
2002
1. Embora diversa das modalidades ligadas aos
ofícios, a Iniciação própria da Cavalaria Espiritual e que cumpre o oficialato
da guerra, inclui-se no conjunto da Arte
Real, onde representa uma forma ativa por excelência.
2. Referimo-nos, como é evidente, à modalidade
operativa da Maçonaria, já que, na sua modalidade especulativa, a Ordem não se dedica
ao exercício de um mister específico, ligado à pedra e à construção, em geral.
3. Evidentemente, referimos eternidade ou infinito
como meras forças de expressão já que,
num e noutro caso, conviria mais, em rigor, falar de tempo ou espaço indefinidos.
4. Não sendo agora oportuno alongarmo-nos neste
tema diga-se apenas que Janu era
patrono dos fabrorum romanos,
corporação clássica de construtores, integrada na linha ancestral da Maçonaria
operativa. Por outro lado, sendo a Janu consagrado
o mês de Janeiro, corresponde-lhe, na cristandade, com o mesmo carácter
solsticial, S. João Evangelista, um dos patronos da Maçonaria moderna, de par
com o - também solsticial - S. João Baptista.
Fonte: http://www.triplov.com/coloquio_4/dugos.html (atualização própria)
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