- Trecho retraído da obra de Eliphas Levi[1] A História da Magia
A grande associação cabalística[2],
conhecida na Europa sob o nome de Maçonaria, surge de repente no mundo, no
momento em que o protesto contra a Igreja
acaba de desmembrar a unidade cristã. Os historiadores desta ordem não sabem
explicar-lhe a origem: uns lhe dão por mãe uma associação de pedreiros formada
no tempo da construção da catedral de Estrasburgo;
outros lhe dão Cromwell[3]
por fundador, sem entrarem questionarem se os ritos da Maçonaria inglesa do
tempo de Cromwell não foram
organizados contra este chefe da anarquia puritana; há ignorantes que atribuem
aos jesuítas, senão a fundação ao menos a continuação e a direção desta
sociedade há muito tempo secular e sempre misteriosa. À parte esta última hipótese,
que se refuta por si mesma, podem se conciliar todas as outras, dizendo que os
irmãos maçons pediram aos construtores da catedral de Estrasburgo seu nome e os emblemas de sua arte. Eles ainda teriam se
organizado pela primeira vez publicamente na Inglaterra, a favor das instituições radicais e a despeito do
despotismo de Cromwell. Pode-se adicionar
que eles tiveram os templários por
modelos, os rosa-cruzes por pais e os
joanitas[4]
por antepassados. Seu dogma é o de Zoroastro
e de Hermes, sua regra é a iniciação
progressiva, seu princípio a igualdade regulada pela hierarquia e a
fraternidade universal; são os mantenedores da escola de Alexandria, herdeiros de todas as iniciações antigas; são os
depositários dos segredos do Apocalipse
e do Zohar; o objeto de sua veneração
é a verdade representada pela luz; eles toleram todas as crenças e não
professam senão uma só e comum filosofia; eles não procuram senão a verdade,
não ensinam senão a realidade e querem trazer progressivamente todas as
inteligências à razão.
O propósito alegórico da Maçonaria é a reconstrução do Templo de Salomão; o propósito real é a
reconstituição da unidade social pela aliança da razão e da fé, e o
restabelecimento da hierarquia, conforme a ciência e a virtude, com a iniciação
e as provas por graus. Nada se faz tão belo e se nota que nada é mais sublime
do que estas ideias e tendências; infelizmente as doutrinas da unidade e a obediência
à hierarquia não se conservaram na Maçonaria universal; houve logo aí uma Maçonaria
dissidente, oposta à Maçonaria ortodoxa, e as maiores calamidades da revolução
francesa foram o resultado desta cisão[5].
A LENDA DE HIRAM
Os franco-maçons possuem sua
lenda secreta; é a de Hiram, complementada
pela de Ciro e de Zorobabel. Eis a lenda de Hiram:
Quando Salomão mandou construir o Templo,
confiou seus planos a um arquiteto chamado Hiram.
Este arquiteto para ordenar os trabalhos, dividiu os trabalhadores segundo sua
habilidade e como era grande o número deles, a fim de reconhecê-los, para
empregá-los segundo seu mérito e remunerá-Ios segundo seu trabalho, deu a cada
categoria de aprendizes, companheiros e mestres palavras de passe e senhas
particulares... Três companheiras quiseram usurpar a posição de mestres, sem o
devido merecimento; puseram-se de emboscada nas três portas principais do
templo, e quando Hiram se preparou
para sair, um dos companheiros pediu-lhe a palavra de ordem dos mestres,
ameaçando-o com sua régua. Hiram lhe
respondeu: "Não foi assim que recebi a palavra que me pedis." O
companheiro furioso bateu em Hiram
com sua régua fazendo-lhe uma primeira ferida. Hiram correu a outra porta, onde encontrou o segundo companheiro;
mesma pergunta, a mesma resposta, e esta vez Hiram foi ferido com um esquadro, outros dizem que com uma
alavanca. Na terceira porta estava o terceiro assassino que abateu o mestre com
uma malhete.
Estes três companheiros
esconderam em seguida o cadáver sob um monte de escombros, e plantaram sobre
este túmulo improvisado um ramo de acácia, fugindo depois como Caim após a
morte de Abel. Salomão, porém, dando pela falta de seu arquiteto, despachou
nove mestres para procurá-lo; o ramo de acácia lhes revelou o cadáver, eles o retiraram
dos os escombros e como lá havia ficado bastante tempo, eles exclamaram,
levantando-o: “Mach Benach”, o que
significa: a carne se desprende dos ossos. Foram prestadas a Hiram as últimas honras, mandando depois
Salomão 27 mestres à busca dos assassinos. O primeiro foi surpreendido numa
caverna: perto dele ardia uma lâmpada, corria um regato aos seus pés e para sua
defesa achava-se a seu lado um punhal. O mestre que penetrou na caverna e
reconheceu o assassino, tomou o punhal e feriu-o gritando: “Nekun!”, palavra que quer dizer “vingança”;
sua cabeça foi levada a Salomão que estremeceu ao vê-la e disse ao que tinha
assassinado: "Desgraçado, não sabias tu que eu me reservava o direito de
punir?" Então todos os mestres se ajoelharam e pediram perdão para aquele
cujo zelo o levara tão longe. O segundo assassino foi traído por um homem que
lhe dera asilo; ele se escondera num rochedo perto de um espinheiro ardente,
sobre o qual brilhava um arco-íris; ao seu lado achava- se deitado um cão cuja
vigilância os mestres enganaram; pegaram o criminoso, amarraram-no e o
conduziram-no a Jerusalém onde sofreu o último suplício. O terceiro foi morto
por um leão que foi preciso subjugar para apoderar-se do cadáver; outras
versões dizem que ele se defendeu a machadadas contra os mestres que chegaram
enfim a desarmá-lo e o levaram a Salomão que lhe fez expiar seu crime. Tal é a
primeira lenda; eis agora a explicação. Salomão é a personificação da ciência e
da sabedoria supremas. O Templo é a
realização e a figura do reino hierárquico da verdade e da razão sobre a terra.
Hiram é o homem que chegou ao domínio
pela ciência e pela sabedoria. Ele governa pela justiça e pela ordem, dando a
cada um segundo suas obras.
Cada grau da ordem possui uma
palavra que lhe exprime a inteligência. Não há senão uma palavra para Hiram, mas esta palavra pronuncia-se de
três maneiras diferentes. De um modo para os aprendizes, e pronunciada por eles
significa natureza e explica-se pelo trabalho. De outro modo pelos companheiros
e entre eles significa pensamento explicando-se pelo estudo. De outro modo para
os mestres e em sua língua significa verdade, palavra que se explica pela sabedoria. Esta palavra é a
de que se servem para designar Deus, cujo verdadeiro nome é indizível e
incomunicável. Assim há três graus na hierarquia como há três portas no templo.
Há três fachos de luz. Há três forças na natureza. Estas forças são figuradas
pela régua que une, a alavanca que levanta e o malhete que firma. A rebelião
dos instintos brutais, contra a nobreza hierática da sabedoria, arma-se
sucessivamente destas três forças que ela desvia da harmonia. Há três rebeldes
típicos: O rebelde à natureza; o rebelde à ciência; o rebelde à verdade. Eles
eram figurados no inferno dos antigos pelas três cabeças de Cérbero. Eles são
figurados na Bíblia por Coié, Dathan e Abiron. Na lenda maçônica, eles são
designados por nomes que variam segundo os ritos. O primeiro que se chama
ordinariamente Abiran ou assassino de Hiram,
fere o grão-mestre com a régua. É a história do justo que se mata, em nome da
lei, pelas paixões humanas. O Segundo, chamado Mephiboseth, do nome de um
pretendente ridículo e enfermo à realeza de Davi, fere Hiram com a alavanca ou a esquadria.
É assim que a alavanca
popular ou a esquadria de uma louca igualdade torna-se o instrumento da tirania
entre as mãos da multidão e atenta, mais infelizmente ainda do que a régua, à
realeza da sabedoria e da virtude. O terceiro enfim acaba com Hiram com a malhete, como fazem os
instintos brutais quando querem fazer valer em nome da violência e do medo,
abafando a inteligência. O ramo de acácia sobre o túmulo de Hiram é como a cruz sobre nossos
altares. É o sinal da ciência que sobrevêm à ciência; é o fecho verde que
anuncia outra primavera. Quando os homens perturbam assim a ordem da natureza,
a Providência intervém para
restabelecê-la, como Salomão para
vingar a morte de Hiram. Aquele que
assassinou com a régua, morre pelo punhal. Aquele que feriu com a alavanca ou a
esquadria morrerá sob o punho da lei. É a sentença eterna dos regicidas. Aquele
que venceu pelo malhete, cairá vítima da força de que abusou e será
estrangulado pelo leão. O assassino pela régua é denunciado pela mesma lâmpada que
o esclarece e pela fonte onde bebe, isto é, a ele será aplicada a pena de
talião. O assassino pela alavanca será surpreendido quando sua vigilância for
deficiente como um cão adormecido e será entregue por seus cúmplices; porque a
anarquia é a mãe da traição. O leão que devora o assassino pelo malhete, é uma
das formas da esfinge de Édipo. E aquele que vencer o leão merecerá suceder a Hiram na sua dignidade. O cadáver putrefato
de Hiram mostra que as formas mudam,
mas que o espírito fica. A fonte de água que corre perto do primeiro facínora lembra
o Dilúvio que puniu os crimes contra
a natureza. O espinheiro ardente e o arco-íris que fazem descobrir o segundo
assassino, representam a luz e a vida, denunciando os atentados contra o
pensamento.
Enfim o leão vencido
representa o triunfo do espírito sobre a matéria e a submissão definitiva da
força pela inteligência. Desde o começo do trabalho do espírito para edificar o
templo da unidade, Hiram foi morto
muitas vezes e ressuscita sempre. É Adônis morto pelo javali; é Osíris assassinado
por Tifo. É Pitágoras proscrito, é Orfeu despedaçado pelas bacantes, é Moisés
abandonado nas cavernas do Monte Neba,
é Jesus morto por Caifás, Judas e Pilatos. Os verdadeiros maçons são, pois os que persistem em querer
construir o Templo, segundo o plano de
Hiram. Tal é a grande e principal
lenda da Maçonaria; as outras são menos belas e menos profundas, mais não
pensamos dever divulgar lhe os mistérios, e mesmo que não tenhamos recebido a
iniciação senão de Deus e de nossos trabalhos, consideramos o segredo da alta Maçonaria
como o nosso. Chegado por nossos esforços a um grau científico que nos impõe
silêncio, não nos julgamos melhor empenhados por nossas convicções do que por
um juramento. A ciência é uma nobreza que obriga e não desmerecemos a coroa
principesca dos rosa-cruzes. Nós também cremos também na ressurreição de Hiram.
Os ritos da Maçonaria são destinados a transmitir a
lembrança das lendas da iniciação e a conservá-la entre nossos irmãos. Perguntarão-nos
talvez como, se a Maçonaria é tão
sublime e tão santa, pôde ela ser proscrita e tantas vezes condenada pela
igreja. Já respondemos a esta questão, falando das cisões e das profanações da Maçonaria. A Maçonaria é a gnose e os falsos gnósticos fizeram condenar os
verdadeiros. Aquilo os obriga a esconder-se, não é o temor da luz, a luz é o
que eles querem, o que eles procuram, o que eles veneram. Mas eles temem os
profanadores, isto é, os falsos intérpretes, os caluniadores, os céticos de
sorriso estúpido, os inimigos de toda crença e de toda moralidade. Em nosso
tempo, aliás, um grande número de homens que se julgam franco-maçons, ignoram o
sentido que seus ritos e perderam a chave de seus mistérios.
Eles não compreendem mais nem
mesmo seus painéis simbólicos, e não entendem mais nada dos sinais hieroglíficos
com que são pintados os pisos de suas lojas. Estes painéis e estes sinais são
páginas do livro da ciência absoluta e universal. Podem ser lidas com o auxílio
das chaves cabalísticas e não têm nada de oculto para o iniciado que possui as
clavículas de Salomão.
...
[1]
Eliphas
Levi tinha como nome de batismo Alphonse
Louis Constant e foi um escritor, ocultista e mago cerimonial francês. O seu pseudônimo "Eliphas Levi," sob o qual ele publicava seus livros,
resultou de pretender ter neles um pseudônimo de origem hebraica associando-o
mais facilmente a outros cabalistas famosos, era considerado por muitos o maior
ocultista do século XIX.
[2]
Um
duplo sentido pode ser dado ao uso do termo, tanto como combinação ou conluio
de homens quanto como da ciência esotérica judaica.
[3]
Em
1649, a Revolução Puritana, sob a liderança de Oliver Cromwell, saiu-se
vencedora contra a Monarquia. Protagonizou a prisão e decapitação do Rei Carlos
I e proclamou a República na Grã-Bretanha. Com a morte de Cromwell, abriu-se um
período de crise, que conduziu à restauração dos Stuart, em 1660. Quando James
II pretendeu restabelecer o catolicismo, desprezando os interesses da maioria
protestante, eclodiu a Revolução Gloriosa, em 1688. O Stuart foi vencido,
refugiando-se na França de Luís XIV. A partir de 1714, reinaram os Hannover,
alemães protestantes.
[4]
Não
fica claro se o autor refere-se a alguma ordem de cavalaria dedica da São João
(como Os Cavaleiros de São João de Jerusalém, Rodes e Malta) ou ao movimento
religioso seguidor da doutrina de São João.
[5] Dada a predileções
religiosas do autor, o mesmo era contra o papel político que a Maçonaria possa
ter assumido durante a Revolução Francesa.
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