por Roger DACHEZ – Tradução José Filardo
SE, COMO NÓS O FIZEMOS AO CONCEBER ESTE COLÓQUIO, ESCOLHERMOS ENTRAR
NO PAÍS DAS LENDAS maçônicas, explorar uma terra povoada por seres
estranhos, aventuras incomuns, e ir em busca de lugares surpreendentes e
secretos, tanto uns quanto outros, então, a cada senhor toda a honra:
Hiram, sem dúvida, será nosso primeiro encontro.
A primeira lenda de fato, no sentido cronológico do termo, mas, sem
dúvida também uma lenda fundadora. Antes e depois, a Maçonaria
especulativa não é bem a mesma coisa. A própria expressão maçonaria especulativa,
onde a ambiguidade nunca será suficientemente salientada, nos lembra
exatamente dos um dos muitos problemas, ainda por resolver totalmente,
pelo menos para esclarecer algumas coisas, relacionam-se até mesmo com a
antiguidade desta lenda, e relatos de que ela poderia ter um fundo
lendário tradicional, é o que chamamos desde o final século XIX um folclore específico das comunidades de construtores desde a Idade Média.
No quadro desta exposição, não se trata obviamente de esgotar um
assunto tão vasto e cujos contornos são, afinal, difíceis de definir. Eu
me permitiria recordar que, aqui por quase dez anos, eu me dediquei na
revista Renaissance Traditionnelle a uma longa pesquisa, sem
dúvida para retomar constantemente, e que para alguns pontos essenciais
deste debate, eu me referirei ainda hoje.
Eu gostaria de abordar a questão das possíveis fontes desta lenda e
propor algumas hipóteses plausíveis sobre as circunstâncias de sua
formação. Eu gostaria também em uma segunda etapa de examinar como a
introdução desta lenda nos primeiros anos do século XVIII, em
certo sentido modificou, e esta é certamente a tese que tentarei
esboçar diante de vocês, profundamente a própria natureza da jovem
instituição maçônica pré-especulativa ou melhor dizendo
protoespeculativa.
Os antecedentes do nome do Arquiteto nos Antigos Deveres
O primeiro problema é o do próprio nome de Hiram como designação do
arquiteto no drama cuja tragédia é revelada na famosa divulgação de
Samuel Prichard, Maçonaria Dissecada, publicada em Londres em
1730. A importância da divulgação de Prichard não é apenas de revelar
pela primeira vez um sistema em três graus, culminando com o grau de
Mestre – The Master’s Part. Sua profunda originalidade é propor
a primeira versão conhecida e coerente da lenda, que deveria a partir
dai constituir o cerne deste grau.
A primeira fonte de onde convém extraí-la são os Antigos Deveres. Na primeira geração destes textos, aquela que contém o Regius (por volta de 1370) e o Cooke (por
volta de 1420), existe uma história tradicional do Ofício que,
especialmente no segundo desses manuscritos contém muitos dados bíblicos
ou patrísticos (filosofia cristã formulada pelos padres da Igreja nos
primeiros cinco séculos de nossa era, buscando combater a descrença e o
paganismo por meio de uma apologética da nova religião, calcando-se
freq. em argumentos e conceitos procedentes da filosofia grega). Em nenhum outro lugar, no entanto, se menciona um arquiteto do Templo de Salomão, muito menos o nome dele. O Manuscrito Cooke contém apenas esta indicação:
“E durante a construção do templo na época de Salomão, diz-se
na Bíblia, no terceiro livro dos Reis, capítulo cinco, que Salomão
tinha oitenta mil maçons trabalhando. E o filho do rei de Tiro era o
Mestre de Obras.”
Menção específica do nome deste artista aparece apenas na segunda geração dos Antigos Deveres, aquela que se abre com o Manuscrito Grand Lodge no 1 datado de 1583. Na narrativa histórica que o contém, encontramos, com efeito, a seguinte passagem:
"E depois da morte do Rei Davi, Salomão que era filho do rei Davi, completou o Templo que seu pai havia começado. E ele mandou procurar pedreiros em várias regiões, e os reuniu,
de modo que tinha 80 mil trabalhadores, que trabalhavam a pedra e eram
chamados Pedreiros, e ele escolheu três mil entre eles que foram
designados para serem os Mestres e comandantes de suas obras. Além
disso, havia um rei de outro reino que se chamava Iram e que amava muito
o rei Salomão e que lhe enviou madeira de construção para suas obras. E
ele tinha um filho chamado Anyone (qualquer um) que era mestre
em Geometria, chefe de todos os pedreiros, e mestre de gravuras e
esculturas e de todos os outros processos de construção utilizados para o
Templo. E isso está registrado na Bíblia, no terceiro capítulo do quarto livro de Reis. 2 ".
Em seguida, a aparição daquele que é chamado de “chefe dos pedreiros” - “Mestre em Geometria” - do Templo coloca uma questão quanto à sua identidade. A palavra Anyone, que significa simplesmente qualquer um, não nos informa coisa alguma. Devemos naturalmente nos perguntar sobre este nome pelo menos enigmático. Sabendo que o Manuscrito Grand Lodge no. 1 é provavelmente uma cópia de um texto mais antigo, pode ser simplesmente que o termo Anyone seja devido ao fato de que o escritor não conseguiu ler corretamente o nome que aparecia no manuscrito original.
Encontra-se, efetivamente, a partir desta época o nome do arquiteto em várias versões dos Antigos Deveres. As variações observadas são muito numerosas:
- Em três textos, de 1600, 1670, 1700, encontramos o termo Amon;
- em uma série de seis textos, de 1670, 1680, 1693, 1700, 1702 e 1750, este personagem é chamado Aynon;
- três versões, de 1670, 1680, 1690, dão Aymon;
- podemos ainda trazer o texto de 1600 que mostra A Man;
- também se devem salientar casos extremamente divergentes, tais como o texto de 1677 com Apleo de 1701 com Ajuon, ou mesmo aquele de 1714 com Benaim.
Para explicar a origem e o significado provável desses termos, duas hipóteses principais foram levantadas.
A primeira, a mais natural, propõe ver nestes diferentes termos uma
série de sucessivas corrupções do nome de Hiram. Pode-se assim sugerir a
seguinte sequência: Hiram – Iram – Yram – Yrane – Ynane- Ynone – Aynone – Anyone. Segundo essa tese, o Mestre dos Pedreiros dos Antigos Deveres teria sido sempre chamado Hiram, conforme indicado na Bíblia às quais esses textos se referem explicitamente, mas seu nome não teria sido em nenhum momento escrito corretamente mais ou menos de 1583 até1675…
Na verdade, é a partir dessa última data que certos manuscritos dão à
personagem o nome que lhe é atribuído na Bíblia. Esta menção só está
presente em dezoito versões posteriores a 1675, das quais muitas são até
posteriores a 1723, data em que veremos posteriormente, aparece o nome Hiram Abif. A hipótese de um Hiram primitivo
– e, naturalmente, esperada – depois corrompida e somente recuperada ao
fim do século XVIIé filologicamente engenhosa, mas dificilmente
convincente, deve-se admitir. Não podemos, no entanto, excluí-la
totalmente.
A segunda hipótese é que estes diferentes nomes nada mais são que corrupções de um nome que não é Hiram,
mas que, no entanto, faz referência a uma figura importante no Ofício.
Em outras palavras, deve-se reconhecer que o nome do homem enviado por
Hiram de Tiro esteja efetivamente na Bíblia, Hiram, os Antigos Deveres teriam desde o final do século XVI dado outra, ligada, no entanto também à tradição do Ofício.
Reteve-se como forma inicial possível, o nome Amon, considerando que as formas Aynon, Aymon, seriam assim facilmente explicáveis por um pequeno erro na grafia da letra M. Mas, por que este nome?
Amon realmente aparece na Bíblia (Provérbios, 8, 30). E em hebraico Amon (aleph, mem, vav,, noun) significa trabalhador, artesão ou artista, mas também arquiteto, ou ainda tutor, mestre de obra. No texto bíblico, a Sabedoria se apresenta assim:
“[...] quando Ele [o Senhor] traçou os fundamentos da terra, eu fui mestre de obra ao seu lado” (versão TOB)
O sentido de artesão, colaborando com a obra, parece ser o mais classicamente aceito, especialmente na Vulgata, refletindo as concepções mais antigas nessa área, e a partir da qual vêm todas as citações bíblicas medievais, onde São Jerônimo diz: Quando appendabat fundamenta terrae, Cum eo eram, cuncta componens. » que se pode traduzir por: Enquanto ele estabelecia os fundamentos da terra, eu estava com ele, reunindo todas as coisas. »
Se esta hipótese relativa a Amon é sedutora, ela enfrenta,
entretanto, algumas objeções: ela é principalmente a forma menos
frequentemente atestada nas muitas versões das Antigas Obrigações e, sobretudo ela nunca foi conhecida como tal nas Bíblias ocidentais, pois Amon é um nome comum, e portanto, sempre traduzido como artesão, arquiteto, etc.). Assim, emerge dessa análise que a hipótese Amon é antes de tudo um exercício de erudição hebraica que não leva em conta as condições nas quais os textos dos Antigos Deveres foram redigidos e transmitidos.
Aymon foneticamente idêntico em Inglês a Amon, pode ser proposto como forma inicial do nome do arquiteto. Aymon pode, por sua vez, por uma falha semelhante à que acabamos de mencionar, explicar a forma Aynon, e também muito facilmente as formas Amon, ou Anon. Não podemos, portanto, sugerir, em primeira abordagem, que os Antigos Deveres dão testemunho de que existia uma tradição no Ofício que atribuía ao mestre de obra do Templo um nome que podia ser Aymon.
As Constituições de 1723 e os textos posteriores (Família Spencer, 1725-1739)
Apenas na História do Ofício contida no Livro das Constituições de 1723 que aparece, pela primeira vez em um documento maçônico, note bem, o nome de Hiram Abiv, dado ao construtor do Templo de Salomão, também chamado de “Príncipe dos Arquitetos“. Foi assim somente depois do texto de 1723 que o nome de Hiram Abif – e não apenas Hiram -, que substitui o de Amon, ou Anon ou Aymon na maioria das versões dos Antigos Deveres posteriores: particularmente nos textos da Família Spencer.
Seis textos são conhecidos, um dos quais foi até mesmo gravado,
publicados entre 1725 e 1726 para quatro deles, 1729 e 1739 para os dois
mais tardios.
Estas datas não são, obviamente, indiferentes, e pode-se notar aqui
que este período de 1725-1730 é igualmente aquele em que parece se
afirmar um terceiro grau agora baseado na personagem de Hiram,
recém-promovida a um papel que parecia nunca ter desempenhado antes,
pelo menos em relação aos textos. É bastante claro que a substituição do
nome de Aymon pelo de Hiram Abiff - ou o de Hiram
(simplesmente) presente em alguns textos depois de 1675 – está
relacionada com o aparecimento do terceiro grau “hirâmico” que Prichard
nos dá conhecimento da primeira versão conhecida.
Sobre a forma “Hiram Abif“
Devemos notar imediatamente que a escolha do termo Hiram Abif
(adotaremos esta grafia mais convencional) para designar nos textos
maçônicos, o arquiteto do Templo de Salomão, por sua vez apresenta um
problema. A expressão Hiram Abif encontra-se em apenas dois lugares da Bíblia:
- // Crônicas, 2 13, onde podemos ler: Huram Abi(aleph, beth, iod)
- e II Crônicas 4, 16, onde temos: Huram Abiv (aleph, beth, yod, vav)
A partir destes dados simples, três problemas se colocam:
1) Qual é o significado exato desses termos?
A raiz ab significa pai, e abi tem um determinante que significa meu pai; quanto a abiv isso significa seu pai. Portanto, de um ponto de vista puramente filológico, esses termos significam:
- Huram abi = Huram meu pai,
- Huram abiv = Huram seu pai,
Duas expressões, devemos salientar, bastante enigmáticas. No entanto, é preciso lembrar que um significado mais amplo de pai, em hebraico, pode indicar a noção de mestre, instrutor, ou conselheiro. Vamos voltaremos mais tarde a tratar das consequências da natureza
bastante obscura dessas duas expressões que nos limitamos apenas a
registrar aqui.
2) Em / Reis 5, que é o terceiro local bíblico onde se fala de nosso Hiram- o artesão, não o Rei – deve-se notar que:
- É Hiram e não Huram,
- que não é absolutamente Hiram-Abi ou Hiram Abif, mas simplesmente Hiram,
que vem de Tiro, o texto afirmando que ele é filho de um Tiriano, e de
uma viúva da tribo de Naftali; ele é, pelo menos neste livro,
exclusivamente um artesão do bronze, que fundia colunas, o mar de
“airain” (liga de cobre, de onde vem a palavra inglesa ‘iron’), mas de
forma alguma um arquiteto, nem um pedreiro.
As duas observações anteriores nos sugerem que se descrevem dois personagens notadamente diferentes, especialmente que as habilidades de Huram, em / / Crônicas, são muito mais amplas. Lemos, de fato, que este era um homem dotado para todos os tipos de trabalho, sabendo de fato trabalhar “o ouro, a prata, o bronze, o ferro, a pedra, a madeira, o escarlate, a púrpura, gravar de tudo e inventar tudo)). Este Huran é, por outro lado, filho de um Tiriano, e uma filha da tribo de Dan.
Se Hiram nos Livros dos Reis era apenas escultor de bronze, Huram Abi do Livro das Crônicas
é muito mais eclético e, possivelmente, conhece o trabalho da pedra. No
entanto, continua a ser artesão, e não, conforme indicam – e somente
eles – os Antigos Deveres, o Mestre Pedreiro do Templo…
Pode-se assim concluir que o Hiram Abif da tradição
maçônica, que só aparece em textos em 1723, é um personagem composto,
emprestado de dois retratos muito diferentes, e que não é encontrado,
como tal, em qualquer texto bíblico.
3) Um terceiro problema, que se junta em parte ao primeiro, deve
ainda ser mencionado. Trata-se da escolha, precisamente, da expressão Hiram Abif para designar esse novo e singular herói. De fato, vimos o significado pouco claro da expressão.
Já na Vulgata, São Jerônimo traduz: Hiram patrem meum et Hyram pater ejus.Pai de quem, exatamente? Poderíamos perguntar… Na primeira Bíblia inglesa de Wyclif em 1380, lemos o mesmo: Hyram my fader e Hyram the fader of Salomon.A Bíblia chamada Grande Bíblia de 1539, propõe: meu pai Hyram e Hiram seu pai, a tradução mais tarde assumida pela célebre Versão Autorizada do Rei James, em 16??? A Bíblia de Bishop de 1572, e a Bíblia de Barker em 1580, retomam também essas fórmulas. Esta última, notável por suas glosas marginais, indica em parte que “seu pai” pode significar que Hyram é o pai do trabalho que está sendo feito no Templo… A partir dessa data até hoje, todas as Bíblias em inglês trazem: Hiram meu pai e Hiram seu pai e sempre sem dar uma explicação.
É provavelmente essa falta de qualquer sentido aparente que levou alguns tradutores a pensar que Hiram Abi talvez fosse um nome próprio,
que não exigia tradução. Foi Lutero quem primeiro pensou nisso. Nos
anos 1520, publicando sua tradução alemã, ele traduziu simplesmente o
primeiro: Hiram Abi e Hiram Abif.
Mas, em 1528, Coverdale, um dos líderes da Reforma na Inglaterra, foi
a Hamburgo e lá se juntou a William Tyndale, e realizou com ele sua
tradução do Pentateuco. É assim que em 1535, Coverdale terminou sozinho
uma tradução baseada essencialmente sobre o trabalho de Lutero. A Bíblia
de Coverdale, em Inglês, foi publicada três vezes em 1535,
1536, 1537, e reeditada em 1551, e foi ela quem, pela primeira vez na
Inglaterra, indica: Hiram Abi e Hiram Abif.
A Bíblia de Matthews, em 1537, retoma esta tradução, mas, a partir de 1539, com a Grande Bíblia já citada, encontramos as traduções clássicas, e novamente a tradução Hiram Abi ou Hiram Abif (exceto na única reedição em 1551).
Devemos, portanto, nos lembrar de que as expressões Hiram Abi e Hiram Abif aparecem apenas em duas Bíblias publicados entre 1535 e 1537 e que caíram bastante rapidamente em desuso. Daí surge uma questão: se a escolha do termo Hiram Abif foi feita, e claramente sob a influência da Bíblia de Coverdale,
mas porque, em 1723, teria surgido a necessidade de manter esta
tradução incomum, tirada de uma Bíblia em desuso por cerca de dois
séculos? Anderson explica, em parte, mas de uma forma muito pouco clara,
em uma nota de pé de página de sua História do Ofício (Craft).
Não se poderia também sugerir que a expressão em questão já existia
na tradição maçônica desde a segunda metade do século XVI? Enfatizamos,
ocasionalmente, a probabilidade de uma mutação pré especulativa na
Inglaterra neste momento. No entanto, é preciso reconhecer que esta
hipótese é bastante frágil. A ideia de um Hiram Abif criado bastante recentemente a partir de todas as peças e dotado de um novo nome parecia ao final desta análise, muito mais plausível.
Uma reação hostil? O Documento Briscoe (1724)
Se o nome de Hiram Abif, para designar o “arquiteto”
do Templo, atestado desde 1723, talvez tivesse sido introduzido muito
mais cedo na tradição do Ofício, resta, entretanto certo que a lenda de
que ele é desde o início o herói trágico lhe confere um novo status. Se o
nome de Hiram tem talvez certa antiguidade no Ofício, a personagem da lenda aparece bem nestes anos 1720, como um recém-chegado.
Convém aqui citar um texto que poderia ser um testemunho indireto.
Ele apareceu em Londres em 1724 sob a forma de um livreto de 64 páginas,
e teve duas outras edições no ano seguinte. Ele reproduz-se em primeira
versão as Antigas Obrigações pertencentes à segunda geração, e que se pode ligar à Família Sloane. Este texto dá especialmente Aynon como o nome do Mestre Maçom do Templo de Salomão. Ele é seguido por copiosos comentários intitulados “Observações e Notas Críticas”,
em um tom muito crítico, na verdade, visando corrigir os erros que,
segundo o autor, o Pastor Anderson tinha cometido em grande número em
seu History of the Craft.
Tratava-se da passagem que se refere ao Templo de Salomão, o autor orienta a controvérsia em torno da personagem de - Hiram Abif. Ele se surpreende, de fato, que sejam concedidos a ele talentos tão diversos e que "nosso sábio Doutor em Leis [ou seja, Anderson] para valorizar suas extraordinárias conferências, [emprega] tanto esforço para provar que este Hiram, o Fundidor de Bronze, um Tiriano, não era Hiram Rei de Tiro [...] “Mais ainda, ele se apega ao “mui engenhoso Doutor Désaguliers“, que, para justificar a variedade dos dons reconhecidos em Hiram refere-se a uma “Carta de Recomendação que o rei Hiram mandou a Salomão [...]“. O autor destacou que nada disso aparece no Livro dos Reis, e finge ignorar que esses detalhes se originam nas Crônicas.
Qualquer que seja a fraqueza do argumento, a importância do documento
reside simplesmente na denúncia feita aqui da artificialidade da
personagem Hiram Abif. Podemos, naturalmente, nos perguntar
sobre a personalidade exata de Samuel Briscoe, de quem nada sabemos. No
entanto, ele parece ter sido claramente consciente dos usos e das
práticas maçônicas de seu tempo.
Mas, sua hostilidade em relação à introdução da personagem de Hiram Abif não
pode não ser relevada. Nenhuma alusão é feita, de resto, em qualquer
grau, de que esta personagem seria o herói, mas é claro, no entanto que
algumas pessoas que conheciam bem a Maçonaria e os seus textos
fundamentais consideravam, início da década de 1720, que a personagem de Hiram Abif era um
intruso, e que o papel que parecia dever desempenhar era sem dúvida
usurpado, pelo menos até então desconhecido. Não se poderia ver ai, mas
esta não é evidentemente uma mera hipótese, o traço das primeiras
agitações causadas pela introdução de um novo grau de Mestre centrado em torno de uma lenda colocando em cena um Hiram que vimos, como o próprio Briscoe, representa, em relação ao personagem bíblico, uma figura composta que pode muito bem ser devida, de fato, à imaginação dos “sábios Doutores” estigmatizados por Briscoe…
As fontes da lenda
Tentar traçar as origens da lenda de Hiram, é um exercício mais difícil do que parece, se queremos permanecer rigorosos. Pode-se, naturalmente, atribuir a esta lenda diferentes fontes
mitológicas e encontrar, procurando um pouco na história de antigas
tribos e religiões egípcias, greco-romanas ou celtas, muitas das
narrativas sagradas e mitos que podem constituir modelos. E autores que
se debruçaram sobre esta questão, de resto, não faltam. Não vamos, por
nossa parte, retornar a estes antecedentes distantes, que pode, no
máximo, ser evocados no máximo como arquétipos, figuras universais,
heróis ou o “deus que morre” (Frazer). Estas referências podem, com efeito, parecer atraentes, no entanto eles certamente não são relevantes.
O erro que cometem geralmente, por diferentes razões, aqueles que
apresentam essas fontes alegadas, é acreditar, ou fingir acreditar, que
essa lenda vem das profundezas dos tempos, como herança natural dos
mitos mais remotos, dos quais ela seria uma das últimas crias. Nós
vimos, e ainda teremos a oportunidade de mostrar a seguir, que ela não
é. A artificialidade da lenda de Hiram, sua criação moderna,
provavelmente nos primeiros anos do século XVIII não pode mais deixar
qualquer dúvida. O problema de sua origem é, portanto, colocado de
maneira muito diferente.
Para resolver isso, é importante não ignorar o clima intelectual e
espiritual em que evoluíram as fontes históricas e tradicionais, de que
dispunham aqueles que, naquela época, eram capazes de forjar essa lenda.
Mas, esses ambientes, se não são explicitamente conhecidos, são,
entretanto bastante claramente identificáveis. Em torno de Desaguliers e
Anderson está um mundo – novo no Ofício - de estudiosos e “sábios Doutores” mergulhados em estudos
bíblicos e clássicos, mas também ansioso por se vincular às tradições
antigas do Ofício. Não nos esqueçamos de que Anderson fez um
considerável esforço para mostrar contra todas as evidências, que a
Grande Loja de 1717, criação profundamente original, inédita naquele
país, não era a ressurreição “revival” de uma Grande Loja mítica e ancestral na qual todos queriam acreditar.
Os antecedentes imediatos da lenda: o Manuscrito Graham (1726)
As diferentes hipóteses propostas, como vemos, para tentar encontrar as origens da lenda de Hiram,
na maioria das vezes enfrentam consideráveis dificuldades. Além delas,
pedir empréstimos a temas míticos ou lendários geralmente sem relação
real e clara com o Ofício, eles costumam conter apenas elementos daquela
lenda, em essência, o assassinato do construtor. Poder-se-ia, de resto,
examinado a história geral da Inglaterra desde o século XVII,
encontrar outros assassinatos injustos, e vários autores não deixaram
de construir teorias, as mais diversas, e muitas vezes as mais
fantasiosas.
Um documento contrasta, no entanto, com todas estas fontes alegadas e
aproximadas. Trata-se de um manuscrito datado de 24 de outubro de 1726,
o Manuscrito Graham, desconhecido por muito tempo, e que foi
apresentado e estudado pela primeira vez pelo famoso pesquisador
britânico H. Poole, em 1937. A contribuição deste texto para a busca de
fontes da lenda de Hiram parecia fundamental.
O documento se apresenta primeiro, como um catecismo, em muitos
aspectos comparável àqueles conhecidos para os anos 1724-1725. Algumas
perguntas e respostas nele contidas são encontradas, com efeito, quase
literalmente em alguns daqueles textos, especialmente em um manuscrito
de 1724, The Whole Institution of Masonry, e em um documento impresso de 1725, The Whole Institutions of Free-Masons Opened. Estas semelhanças são importantes de serem ressaltadas, porque elas estabelecem que o Manuscrito Graham não
seja apenas um texto isolado e atípico, mas que ele se insere
incontestavelmente em uma corrente de instruções maçônicas reconhecidas e
divulgadas na Inglaterra, nesta época. Deve-se finalmente, notar
particularmente o tom cristão fortemente afirmado das explicações
simbólicas que são ali propostas.
Ao final do catecismo propriamente dito, aprendemos que "pela tradição e também por referência às Escrituras". Seguem agora, três narrativas distintas, três lendas que devem ser examinadas em detalhe.
Primeira Lenda:
“Estes três homens já tinham concordado que, se eles não
descobrissem o verdadeiro segredo em si, a primeira coisa que ele
descobrisse assumiria para eles o lugar do segredo. Eles não duvidavam,
mas acreditavam muito firmemente que Deus poderia e iria revelar sua
vontade, pela graça de sua fé, de sua oração e de sua submissão, de modo
que aquilo que eles iriam descobrir se revelaria também útil para eles
como se eles tivessem recebido o segredo desde o início, de Deus em
pessoa, direto da própria fonte.
Eles chegaram ao túmulo e nada encontraram, exceto o cadáver
quase totalmente decomposto. Eles seguraram um dedo que se soltou, e
assim de junta em juntar, até o pulso e o cotovelo. Então, eles
levantaram o cadáver e o apoiaram contra si pé contra pé, joelho contra
joelho, peito contra peito, rosto contra rosto e mão nas costas, e
exclamaram: “ Ajuda-nos, oh Pai“. Como se tivessem dito, “Oh Pai no céu nos ajude agora, porque nosso pai terreno não o pode fazer.”
Eles descansaram, a seguir, o cadáver, não sabendo o que fazer.
“Um deles disse, “Existe a medula nesses ossos” [Marrow in this bone]; o
segundo disse:” Mas é um osso seco “, e o terceiro disse: “ Ele fede“.
Eles concordaram então em dar a isso um nome que ainda é conhecido da Maçonaria de nossos dias. »
Segunda a Lenda: (Ela é exposta sem conexão aparente com a anterior.)
“Durante o reinado do Rei Alboin nasceu Bezalel, que foi chamado assim por Deus antes mesmo de ser concebido. E este
santo sabia por inspiração que os títulos secretos e os atributos
essenciais de Deus eram protetores, e ele construiu com base neles, para
que nenhum espírito mau e destrutivo se atrevesse a derrubar a obra de
suas mãos.
Também suas obras se tornaram tão famosas, que os dois irmãos
mais novos do rei Alboin, já nomeado, quiseram ser instruídos por ele
sobre sua nobre maneira de construir. Ele aceitou com a condição de que
eles não revelassem, sem que qualquer que estivesse com eles pudesse
compor uma tripla voz. Então eles juraram e ele lhes ensinou as partes
teóricas e práticas da construção, e eles trabalharam. […]
Assim, Bezalel, sentindo se aproximar a morte, desejou ser
enterrado no Vale de Josafá, e um epitáfio foi gravado segundo seus
méritos. Isto foi realizado por estes dois príncipes, e foi registrado
da seguinte forma: “Aqui reside a flor da arte construtiva,
superior a muitos outros, companheiro de um rei, e irmão de dois
príncipes. Aqui jaz o coração que soube guardar todos os segredos, a
língua que nunca os revelou. “
Terceira lenda : (Sem qualquer transição, novamente, uma última narrativa é proposta ao leitor.)
“Aqui está tudo que se relaciona com o reinado do rei Salomão, [filho de Davi], que começou a construir a Casa do Senhor: [...]
lemos no Primeiro Livro dos Reis, capítulo VII, versículo 13, que
Salomão mandou buscar Hiram em Tiro. Este era o filho de uma viúva da
tribo de Naftali, e seu pai era um Tiriano que trabalhava em bronze.
Hiram era cheio de sabedoria e habilidade para executar todos os tipos
de obras em bronze. Ele foi até o Rei Salomão e dedicou a ele toda a sua
obra. [...] Assim, segundo esta passagem da Escritura, devemos
reconhecer que esse filho de uma viúva, chamado Hiram, tinha recebido
uma inspiração divina, assim como e sábio Rei Salomão ou ainda o santo
Bezalel. No entanto, a Tradição relata que, durante esta construção,
teria havido disputas entre trabalhadores e os pedreiros sobre salários.
E para apaziguar todo mundo e chegar a um acordo, o rei sábio teria
dito” que cada um de vocês seja satisfeito, porque todos vocês vão ser
pagos da mesma forma. “Mas ele deu os pedreiros um sinal que os
trabalhadores não tinham conhecimento. E aquele que podia fazer esse
sinal onde os salários eram pagos, recebia como pedreiro; e os
trabalhadores que não o conheciam, eram pagos como anteriormente. [...]
Assim, o trabalho evoluiu e progrediu e ele não poderia dar errado, já
que eles trabalhavam para um mestre tão bom, e tinha o homem mais sábio
como supervisor. [...] Para ter a prova disso, leia o 6 º e 7 º
[capítulos] do primeiro Livro dos Reis; você encontrará ali o
maravilhoso trabalho de Hiram durante a construção da Casa do Senhor.
Quando tudo acabou, os segredos da construção foram colocada em boa
ordem, como eles são agora e serão até o fim do mundo [...] “
Medimos facilmente a importância e o interesse maior das três narrativas principais. Sublinhemos apenas os pontos essenciais.
A primeira narrativa do Manuscrito Graham também é o primeiro texto da história maçônica que descreve um rito de erguimento de um cadáver associado aos Cinco Pontos do Companheirismo, atestados por sua vez, desde 1696 nos textos
escoceses. O objetivo é tentar encontrar um segredo – não sabemos a que
de resto se refere – que se perdeu com a morte de seu detentor.
Associa-se a ele um trocadilho provável com “Marrow in the Bone” evocando bastante claramente uma expressão em M.B. É evidente que isso está relacionado “ao nome que ainda é conhecido pela Maçonaria de hoje”, que aparece como uma alternativa secreta. A característica mais notável é que não se vê aqui qualquer ligação com a arte da Maçonaria, especialmente que a personagem central não é Hiram, mas Noé…
A segunda narrativa descreve a personalidade de Bezalel
possuidor de segredos maravilhosos relacionado com o Ofício, que serão
comunicados apenas a dois príncipes. O ponto importante nos parece aqui
ser o epitáfio, evocando “o coração que soube guardar todos os segredos, a língua que nunca os revelou. ». Este tema devemos observar, está ausente da primeira lenda.
Enfim, a terceira narrativa coloca em cena Hiram, “supervisor mais sábio da terra“, e que controlava provavelmente a transmissão aos bons trabalhadores do “sinal “, que dava direito ao pagamento de “pedreiros“. Notem-se especialmente aqui os segredos estão e permanecem bem guardados, que Hiram conclui o Templo, e que ele não morre de morte violenta…
A simples leitura destas três narrativas impõe uma constatação
imediata: sua super-posição nos dá quase inteiramente em substância a lenda de Hiram conforme relatada pela primeira vez em 1730 por Prichard. A grande inovação é que Hiram-, cujo papel, respeitável, mas modesto, no Manuscrito Graham, é consistente um pouco com o que se costuma dizer sobre ele nas Antigas Obrigações-, e agora substitui Noé no rito de recuperação. É a Hiram, aliás, e não a Bezabel que agora pertencem “o coração que soube guardar todos os segredos, a língua que nunca os revelou”. Mas a terceira lenda do Manuscrito Graham não indica que Hiram teria recebido uma inspiração divina como “o santo Bezalel“?
Lembremos para o momento em que a natureza compósita da personagem de Hiram Abif da lenda do terceiro grau de Prichard, já evocada por várias razões, nós vimos, aparece aqui inequívoca. A lenda de Hiram,
que se pode ou se deseja vincular a alguma fonte inspiração mais ou
menos antiga é, sem dúvida, uma síntese tardia de várias lendas cuja
antiguidade continua a nos ser desconhecida. A lenda dos três filhos de Noé, dado o papel que desempenha este personagem na história tradicional do Oficio dos Antigos Deveres, bem como a versão da vida de Hiram, relatada no Manuscrito Graham,
são tão consistentes com os mais antigos textos da tradição maçônica
Inglesa, que podemos sugerir fortemente, é claro, sem poder afirmar, que
eles provavelmente eram parte de uma lenda bastante antiga, própria do
Oficio.
De qualquer forma, foi estabelecido que em 1726 – ano em que, pela
primeira vez nos anais da Maçonaria, temos provas documentais de
iniciações em um terceiro grau em Londres – um texto maçônico nós
mostra, portanto, que essa síntese, se já tivesse sido feita, nem sequer
nos era ainda conhecida. Isso deve ser enfatizado, é uma conquista
importante da pesquisa.
Interrompo aqui a análise das fontes desta lenda, sabendo que muitos
outros pontos, poderiam ser levantados, e que várias questões correlatas
permanecem sem resposta. Eu simplesmente quis pegar o exemplo desta
lenda importante da tradição maçônica para sugerir como a maçonaria foi
capaz de desenvolver e demonstrar como, sobretudo a complexidade que se
encontra escondida debaixo da aparente simplicidade da maçonaria
transmitida desde cerca de 270 anos.
Uma transição importante?
Eu gostaria, para encerrar, de propor algumas observações mais gerais. Quando em 1691, um clérigo escocês, Robert Kirk definiu a maçonaria, ele simplesmente escreveu:
“É uma espécie de tradição rabínica em forma de comentário sobre Jackin e Boaz, os nomes das colunas do Templo de Salomão.”
Maçonaria é assim simples – o que não significa que ela não seja rica
– e parece estruturada pelas duas colunas do Templo de Salomão. Esta é
uma maçonaria sem lenda operativa se me permitem esta expressão. Neste
sentido, o grau de Mestre hirâmico introduziu uma inovação pelo menos
tão considerável quanto à formação de uma Grande Loja desde 1717, mas
especialmente entre 1719 e 1723. Poderíamos, de resto, levar as duas
iniciativas ao crédito dos mesmos personagens, ouvir os mesmo “sábios Doutores” tão violentamente denunciado por Briscoe em 1724.
Quando alguém se lança, como tentei fazer aqui em uma espécie de
arqueologia da lenda de Hiram, pode-se ver sem dificuldade que ela foi
habilmente concebida para adornar uma maçonaria de um novo tipo, mais
sutil, mais sofisticada, como se quisesse, talvez também mais
aristocrática e mais seletiva, mais substancial para os espíritos
elevados. Trazendo nos rituais o mesmo refinamento literário, bíblico e lendário em uma palavra, que Anderson havia agregado, ele mesmo, na reescrita completa da História do Craft à
qual ele se entregou, em nome da Primeira Grande Loja, poucos anos
antes – ou talvez precisamente na mesma época e em um mesmo movimento.
Quero sugerir aqui que, se a história da lenda de Hiram não é
exatamente superponível à história do grau de Mestre, que a inclui sem
se inscrever inteiramente, essa lenda constitui certamente uma
importante transição na história da primeira Maçonaria especulativa. Ao
contrário das lendas do Ofício, mais ou menos modificadas, de tempos em
tempos, de acordo com as transmissões, memória mais ou menos fiel e do
imaginário coletivo, sem perspectiva ou plano consertado, todas as
coisas que ela pode inspirar como vimos, a lenda de Hiram traduz, por
outro lado, uma vontade, e é um fato radicalmente novo. Ela é o
resultado de uma ação consciente e calculada visando à elaboração de
conteúdos renovados, a serviço de uma visão diferente da instituição
maçônica. A intenção era, através da estruturação de outro grau, criar
menos uma aristocracia maçônica que favorecer uma maçonaria
aristocrática. Esta lenda, que revela irresistivelmente um trabalho de
estudioso, foi muito provável, em seu próprio princípio, um instrumento
político na jovem Grande Loja de Londres.
De toda forma a história, como acontece tantas vezes, veio a
transcender seus atores mais do que acreditam demasiado facilmente os
autores. A lenda de Hiram, sua missão cumprida, o novo grau de Mestre
implementado e imposto gradualmente começou a viver sua própria vida,
incontrolável e imprevisível. Ela criou um novo conceito, prometeu um
destino fabuloso, e que devia se declinar até o infinito nos altos graus
de que ela foi o modelo fundador. Não é claro que o mais velho desses
destes altos graus repouse sobre glosas, às vezes laboriosas e
dolorosas, nos bastidores, os antecedentes ou as consequências da morte
de Hiram?
Fomos, de resto, questionados sobre o que teria acontecido de a lenda
não tivesse sido concluída, assim como Prichard a relatou, por uma
palavra perdida, uma palavra substituída e um arquiteto tragicamente
desaparecido. Vemos, com efeito, sem dificuldade a falha deste esquema:
seria necessário reencontrar a palavra perdida e substituir o arquiteto,
aqui está algo para escrever cinco ou seis outras lendas e um número
igual de graus. Se a maçonaria se lançasse imediatamente, e por várias
décadas, em uma maravilhosa e às vezes louca empresa criadora de graus
em busca da Palavra perdida, não é simplesmente porque os autores da
lenda fundadora a construíram como uma narrativa aberta e inacabada?
Imperícia ou gênio? Ninguém pode responder.
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